Atesta CFM usurpa poderes da União, dizem especialistas

Por Antonio Carlos Souza de Carvalho - Consultório Jurídico

A opinião dos especialistas no assunto é quase unânime: obrigar médicos, pacientes e instituições a validar atestados por meio de uma única via — a plataforma Atesta CFM — é inconstitucional. A Resolução 2.382/24 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que determina que atestados só têm validade se emitidos por meio de sua plataforma própria, excede o poder regulamentar da entidade, de acordo com os estudiosos do assunto.

A norma viola a Constituição no princípio da legalidade, no direito à vida privada dos pacientes e no direito à proteção de dados pessoais sensíveis, segundo Fernando Aith, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). “A norma fere, ainda, o artigo 37 da Constituição. Ela cria, por meio de ato normativo infralegal, uma plataforma que vai contra o princípio da legalidade, da moralidade administrativa, da impessoalidade e da pessoalidade. Viola vários dispositivos do artigo 5º, do artigo 37 caput e do 198 da Constituição Federal.”

O juiz Bruno Anderson Santos da Silva, da 3ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, suspendeu a resolução com uma liminar nesta segunda-feira (4/11).

Advogados apontam uma série de desrespeitos das normas constitucionais para a criação de obrigações legais. O primeiro ponto é que uma autarquia não tem competência para criar obrigações primárias. “Cabe-lhes apenas implementar a execução prática das leis vigentes. Assim, a resolução do CFM configura um ato inconstitucional”, diz Juliana Teixeira Barreto, especialista em Direito Médico e da Saúde do escritório Kadi Advogados.

A resolução também não observa a Lei 14.063/2020, que já regulamentou o uso de assinaturas eletrônicas na área da saúde. “A lei dispõe que esses documentos devem ser disciplinados por ato do Ministério da Saúde. Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 198, inciso I, estabelece que as ações e serviços públicos de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde devem seguir a diretriz da descentralização, com direção única em cada esfera de governo”, complementa a advogada. Para ela, o CFM usurpou prerrogativas do Ministério da Saúde no que se refere à gestão do SUS.

Juliana aponta que a resolução também fere o artigo 4º da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019). O artigo assegura que os únicos entes capazes de regulamentar as normas tratadas pela lei integram a administração pública. Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP, concorda. “Isso impacta em todo o SUS e na logística de lugares sem a adequada instalação de internet ou facilidade para retirada do talonário físico, além de todo um mercado interno desenvolvido em prol da telessaúde”, diz. A norma do CFM também previa que os atestados em papel só seriam válidos se escritos em folhas fornecidas pelo conselho.

Todos os especialistas consultados concordam que o CFM ultrapassou suas competências. “Embora seja dever e escopo do CFM a adequada regulação da Medicina, a regulação em si não pode impactar outras esferas envolvidas no sistema de saúde, o que torna a resolução potencialmente inconstitucional e ilegal”, diz Fürst.

Dados sensíveis expostos

Outra grande preocupação é a possibilidade de disponibilizar a base de dados da plataforma a terceiros, já prevista na resolução. “A resolução viola o direito à vida privada, à imagem e à honra dos pacientes. Os conselheiros e funcionários do CFM vão ter pleno acesso a dados sensíveis e ultrassensíveis dessas pessoas, que não consentiram isso. Elas consentem aos médicos de confiança delas”, comenta Aith.

Essa questão viola o artigo 5º da Constituição, que prevê a proteção dos dados pessoais, inclusive em meios digitais. “O CFM está criando um monopólio de dados sensíveis de saúde que serão reunidos nessa plataforma sob sua própria gerência. O potencial econômico, político e social de uma plataforma desta envergadura é incomensurável e não deve ficar sob a gestão e responsabilidade de uma instituição corporativa de médicos”, detalha o especialista.

De acordo com ele, a plataforma Atesta CFM é um dos maiores bancos de dados de pessoas do mundo.

Perspectiva trabalhista

Uma das justificativas para a obrigação do uso da Atesta CFM é o combate à compra de atestados e laudos falsos. Para os advogados que falaram com a revista eletrônica Consultor Jurídico, a proposta não resolve o problema. “O CFM apressou-se a evitar uma prática muito arriscada à saúde coletiva, que é a venda de atestados ou receitas médicas, mas o fez isolado de outras instâncias que também têm interesse na questão”, diz Fürst.

Para Antônio Carlos Souza de Carvalho, advogado trabalhista e sócio do escritório Souza de Carvalho Sociedade de Advogados, o conselho parece apenas querer controlar a emissão dos atestados. “Ferramentas de verificação de autenticidade da assinatura já existem e em grande quantidade. O CFM não tem a competência legal de atestar a veracidade ou a consistência de um diagnóstico médico, apesar da proposta parecer apontar para esse caminho. E a exigência de que os médicos usem a plataforma é ilegal, usurpa poderes de União, estados e municípios”, diz.

O especialista aponta que o CFM sequer apresentou embasamento estatístico sobre a dimensão real do problema. “Crimes de falsificação são assunto do Estado brasileiro em todas as suas instâncias. A autenticidade do diagnóstico médico é outra questão, que não se resolve apenas na responsabilidade do médico que assina. Há que se discutir diferentes opiniões científicas, estratégias e hipóteses diagnósticas. Superadas essas barreiras, ficariam ainda as questões relacionadas à ética médica e aos crimes de falsidade ideológica que acontecem nessa seara”, elucida.

A proposta não tem relevância real para a Justiça do Trabalho, segundo o advogado. “Via de regra, casos em que há necessidade de avaliação médica são encaminhados para perícia isenta que analisa a pertinência de determinado diagnóstico. Mas isso não significa necessariamente que o laudo em sentido contrário seja necessariamente falso, ele pode apenas ser divergente ao posicionamento do perito. Sempre haverá um grau de subjetividade, compatível com a liberdade do exercício da profissão, que não pode ser limitado pelo CFM, mas sim garantido”, conclui.

Aith lembra ainda que só a lei pode impor limitações ao exercício da profissão. “O CFM está impondo uma restrição a exercício da profissão médica, que não está prevista em lei.”

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